O Vogue, sucesso nas noites de quarta no Novo Anhangabaú, não existiria se Crystal LaBeija não tivesse transformado sua indignação em ação, iniciando um movimento que mudaria a História.
Quando o diretor Frank Simon decidiu documentar os bastidores do Miss All-America Camp Beauty Contest de 1967, no documentário The Queen, queria apenas apresentar ao público geral o mundo dos concursos de drag queens. Mal sabia ele que iria registrar em filme um momento histórico para a comunidade LGBTQIAPN+.
No momento em que, ao final do concurso, Flawless Sabrina, apresentadora da competição e narradora do documentário, anunciou Crystal LaBeija como quarta colocada, a reação de LaBeija colocaria em movimento uma verdadeira revolução. Furiosa, ela quebrou o protocolo e simplesmente deixou o palco, de cabeça erguida, sem nem esperar o anúncio da vencedora.
O que acontece a seguir é uma metralhadora de verdades sobre a impossibilidade de alguém como LaBeija – de origem preta/latina – vencer um concurso como aquele. No calor do momento, muitos viram a atitude como apenas a fúria de uma má perdedora, ignorando o racismo denunciado por Crystal. Eis que alguém (que a câmera não capta) diz que ela está “mostrando suas verdadeiras cores”. Em inglês, essa expressão significa algo como “caiu a máscara”, mas a pessoa poderia muito bem ter dito isso no sentido literal.
“Eu tenho direito de mostrar a minha cor, querida”, foi a antológica resposta de Crystal LaBeija.
Esse momento foi a gota d’água para LaBeija. Não era mais possível fazer parte do sistema racista por trás das competições de drags. Dessa indignação, nasceu o movimento Ballroom.
Em algum ponto da década de 1970 (as datas divergem, dependendo da fonte), ao lado da amiga Lottie LaBeija, Crystal funda a House LaBeija, dando início à cultura de Houses que mudaria por completo a vida de milhares de pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ ao longo da História. Sua house era exatamente isso, uma casa que acolhia gente queer preta/latina como uma família substituta, na qual Crystal era a Mãe e todos os demais participantes eram chamados Irmãos e Irmãs.
Em paralelo, Crystal e Lottie também promoveram o pomposo Crystal & Lottie LaBeija presents the first annual House of LaBeija Ball at Up the Downstairs Case on West 115th Street & 5th Avenue in Harlem, NY, a primeira competição voltada exclusivamente para drags pretas e latinas e o marco inicial da cultura Ballroom.
A ideia das casas colou e não demorou para que outras fossem surgindo em Nova York, seguindo o padrão estabelecido pela House LaBeija. A cena Ballroom ganhou força com a ascensão de novas Houses pela cidade e os bailes deixaram de ser concursos de beleza e passaram a incorporar competições novas que eram disputadas entre as casas.
Uma dessas novas modalidades era o Vogue. Ao primeiro olhar, o Vogue é um estilo de dança fortemente marcado por movimentos angulares e poses que remetem aos ensaios de moda. Mas não é só isso. O Vogue é um movimento de celebração e reafirmação de identidade de gêneros do ponto de vista da população preta, que ganhou o mainstream depois de virar tema de música da diva pop Madonna.
O legado de Crystal LaBeija
Em reportagem de 2019, a Rolling Stones afirmou que Crystal teria falecido em 1982, em decorrência de uma doença no fígado. A informação foi desmentida pelo New York Times, que comprovou que ela estava viva em 1993, quando participou do relançamento do documentário The Queen. A data da morte da grande Mãe da House LaBeija segue desconhecida.
Seu legado, no entanto, segue bem vivo, com a @officialhouseoflabeija seguindo firme e forte até os dias de hoje e a queer, preta e periférica cena Ballroom recevendo uma visibilidade cada vez maior no mundo inteiro. E no Novo Anhangabaú, claro, onde o Vogue é destaque desde o início de nossas atividades, em dezembro de 2021. Vem conferir:
Vogue
Quartas-feiras
20h
Terra de Todos