Tem MC viking, árabe, paraibano…
As batalhas de MCs como conhecemos hoje nasceram junto com a cultura hip hop, lá pelos anos 1970, no bairro do Bronx, em NY. De cara, as rap battles surgiram com dois formatos bem definidos: as “rinhas” freestyle e as músicas diss, com letras que repetem a função das batalhas, promover o compositor e destroçar verbalmente o alvo.
Ocorre que a treta via rima não é exclusividade do hip hop, ela acompanha o rolê humano pela Terra há muito, muito tempo. Ao longo da História e nas mais diversas culturas, podemos encontrar batalhas de MCs de época, com oponentes gastando o dicionário na prática da nobre arte da ofensa. Veja algumas dessas manifestações culturais:
Naqā’iḍ
Uma vertente de poesia árabe pré-islâmica que consistia em uma competição entre dois poetas concorrentes,cada um representando uma tribo rival. A disputa servia à importante função social de determinar a supremacia tribal.
Sim, essa espécie de tataravó das batalhas de MCs – travada só na palavra, sem melodia – era importante o bastante que chegava a substituir uma batalha de verdade, pois a tribo do poeta vencedor provava sua “superioridade” na região sem derramar uma gota de sangue.
Sanankuya
Outra batalha verbal que toma o lugar de confrontos físicos. É uma característica social presente entre os povos Mande do Mali, Guiné e Gâmbia que estabelece como “primos” clãs, tribos, profissões e até indivíduos que possuam algum tipo de rivalidade. Esse “parentesco” dá origem ao que os Mande chamam de "relação de brincadeira", que envolve um ritual de troca de ofensas humorísticas para “quebrar o gelo” e apaziguar os ânimos.
Flyting
No século 5, os vikings criaram um ritual de troca de insultos através da poética. O nome vem do inglesamento da palavra nórdica antiga flyta, que significa “provocação”. Os temas favoritos para queimar o adversário eram covardia e/ou perversão sexual envolvendo animais, familiares… A parada era hardcore.
As viagens vikings levaram o flyting para o restante da Europa, mas a disputa de xingamentos rimados pegou mesmo nos países do Reino Unido. Em alguns reinos, a prática se transformou no “Flyting de Corte”, um conflito cômico – que, às vezes, descambava pra escatologia – entre dois homens letrados, com a finalidade de entreter reis e rainhas. Os monarcas escoceses James IV e V eram famosos por rachar o bico com esse tipo de apresentação.
O flyting foi popular na Europa até meados do século 16, aparecendo até na obra de William Shakespeare. A estudiosa Margaret Galway aponta nada menos que 13 flytings cômicos presentes nas tragédias do Bardo.
Repente
Surgido no final do século 19, na Paraíba, o repente tem esse nome por ser marcado pelo improviso, pela necessidade de criar rimas coerentes “de repente”. Essa expressão cultural genuinamente brasileira (também conhecida como cantoria) tem origem na tradição medieval dos trovadores, trazida ao nosso país pelos exploradores europeus.
Os repentistas podem versar sobre qualquer assunto, mas há uma vertente voltada somente à batalha entre dois cantores, armados apenas de pensamento rápido, língua afiada e uma viola para queimar o oponente e valorizar suas próprias habilidades.
Recentemente, o repente foi reconhecido como patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan (Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Ikocha Nkocha
Estudiosos da cultura preta norte-americana teorizam que esse jogo ancestral nigeriano é um antepassado direto das batalhas de MCs. A semelhança é inegável, já que o ikocha nkocha consiste de uma disputa verbal, rimada e ritmada entre dois participantes, geralmente crianças ou adolescentes, na qual cada oponente busca valorizar suas próprias características e ofender o adversário, demonstrando uma corrente de pensamento coerente e um vocabulário farto.
Em 1976, o acadêmico Amuzie Chimezie traçou a ligação entre o ikocha nkocha e a prática cultural afro-americana chamada The Dozen, disputa verbal mais focada nos parentes dos participantes, especialmente a mãe. Segundo Chimezie, os Dozens – considerados um dos pilares do hip hop – seriam uma reinvenção do jogo ikocha nkocha, trazido ao continente americano pelos africanos escravizados. Os ostensivos ataques à figura materna do concorrente teriam a função catártica de ofender o escravizador; “yo’ mama” (“sua mãe”) seria, na verdade, uma forma velada – impune e genial – de atingir o dito “senhor” de escravos.
Batalha de MCs no Novo Anhangabaú
Você (sim, você, quem quer que você seja) pode encontrar essa filha mais jovem do ancestral jogo de ikocha nkocha na programação cultural do Novo Anhangabaú. São duas oportunidades semanais para curtir, votar e, acima de tudo, ouvir a voz identitária da periferia de SP. Anota aí:
SÁBADOSP
Batalha de MCs
Área Skate
13h
DOMINGO para todas as idades
Batalha de MCs
Área Skate
14h